segunda-feira, 16 de maio de 2011

Sensibilidade à flor da pele

Para Élvis Herrmann Bonini

Ele chegou meio calado, misterioso, não olhava para os lados, parecia que não queria estar ali. Sentou em uma das mesas intermediárias da classe, tirou o estojo da mochila e organizou todas as canetas em ordem crescente em cima da mesa, o cabelo escuro e um pouco comprido caia sobre os olhos, carregava um sorriso que surgia disfarçadamente no rosto, seus olhos diziam que ele era uma alma que ainda estava se descobrindo.
Com o tempo já era possível observar que ele era um tipo raro de rapaz, carregava uma luz própria, entre tantas faces e facetas ele via a essência de sentimentos, que normalmente as pessoas tentavam esconder. Seu olhar agora mais definido era meigo e forte, um contraste que mostrava que apesar de ainda um pouco perdido ele sabia onde queria chegar, só falta definir os caminhos.
Alguma coisa me chamava a atenção naquele rapaz que sentava nas mesas intermediarias, nunca tinha conversado com ele, mas sempre o observava falando com outras pessoas, ele tinha um papo curioso, interessado no que os outros diziam, parecia ter emoções que borbulhavam dentro do peito, mas que ainda meio sem jeito ele não conseguia lidar com elas. Ele não era uma daquelas almas que vagam perdidas num deserto de almas desertas, de onde às vezes é impossível sair, e eu não o conhecia, mas o observava, de longe era possível notar que ele tinha algo que o diferenciava da maioria, uma sensibilidade que não se podia explicar e que eu queria experimentar, mas não tinha coragem.
Muitos anos se passaram, a minha covardia não me permitiu que nos aproximássemos na juventude, hoje sei que perdi muito tempo por causa disso e se pudesse me arrepender eu faria diferente. Após um tempo sem vê-lo reconheci aquele rosto, agora mais velho por causa do tempo, os cabelos não caiam mais sobre os olhos, o sorriso não era mais tímido, era alegre e marcante. Na primeira vez que eu o vi andando pelos corredores do prédio passei por ele como se fosse apenas mais um vizinho, acenei com a cabeça e ele respondeu com um oi tímido, senti naquele momento que ele me reconheceu ou apenas era simpático. Sempre escutava uma música que vinha dos andares de cima, um som que me fazia relaxar, pensava naquele rapaz, um tipo diferente de rapaz, não sabia por que ele aparecera de novo em minha vida, eu achava estranho o encantamento que eu tinha pelo jeito de ser dele, mas nunca tinha pensado em reencontrá-lo, não depois de tantos anos.
Fiquei dias sem vê-lo, achei que ele pudesse estar apenas visitando algum vizinho meu. Mas os encontros começaram a ser mais freqüentes, até que um dia foi inevitável, ele me reconheceu e perguntou se eu não havia sido colega dele na escola. Respondi que sim, perguntei como ele lembrava de mim, já que nunca havíamos trocado muitas palavras além de comprimentos que aconteciam esporadicamente. Mas ele lembrava de mim, assim como eu lembrava dele, eu tinha certa curiosidade em relação a aquele rapaz, que hoje estava na minha frente, um homem e com as mesmas emoções dos tempos de garoto.
Eu já tinha mudado muito, não tinha mais medo de conversar. Descobrimos que éramos vizinhos, ele morava no apartamento de cima, rimos muito quando começamos a nos conhecer e a relembrar das histórias do colégio, apesar de não termos convivido sabíamos muitas historias em comum. Tornamo-nos grandes amigos, mas eu continuei a observá-lo, a cada dia que passava a nossa convivência aumentava e eu podia ver que aquela essência da juventude tinha se tornado realidade, ele ainda sabia onde queria ir e já havia encontrado os caminhos, minha curiosidade sobre ele também aumentava, eu queria descobrir o que ele tinha de tão especial.
Eu que nunca fui de muitos amigos, encontrei nele uma família, nossa convivência era muito intensa e especial, compartilhávamos dos mesmos gostos. Muitas vezes eu estava em casa, com um copo de vinho e muitos papéis para ler e problemas para resolver, mas largava tudo quando ouvia o som no apartamento de cima, ele sempre colocava discos que me faziam dançar, acho que muitas vezes isso acontecia sem querer, mas nos tínhamos uma ligação, parecia que ele sabia quando eu estava ficando triste ou com muitas coisas para fazer e pensar, a música me ajudava a relaxar, muitas vezes fiquei dançando no meio da sala da minha casa, nunca contava isso pra ninguém, mas ele parecia saber.
Dividíamos também algumas frustrações, o amor era assunto muito presente, mas muito distante. Costumávamos conversar muito sobre assuntos do coração, não sabíamos explicar como as pessoas conseguiam se apaixonar, só sabíamos que paixão e sofrimento andavam juntos, acho que sempre tivemos medo de amar, medo de sofrer, como já aconteceram algumas vezes. Também ficávamos horas falando sobre o mundo, sobre pessoas, um dia toquei no assunto das almas que viviam no deserto de almas e como algumas nunca sairiam de lá, ele riu, mas entendeu o que eu queria dizer. Falava que às vezes é difícil pensar nessas pessoas, em como essas almas acabavam assim, como elas não podiam sentir o que acontecia em volta delas. Foi através de assuntos que nos frustravam e nos agonizavam que eu pude ir descobrindo qual era o mistério que rondava aquela pessoa adorável, perceber que ele também tinha dias ruins, medos e insatisfações que o tornavam o que ele realmente era, uma pessoa, ser humano e como todos os seres humanos ele também tinha coisas mal resolvidas, mas o que mais me intrigava era a visão que ele tinha dessas coisas que o atormentavam. Sempre da mesma forma, seguia com um olhar meigo e forte que mostravam que ele não era uma pessoa comum.
Hoje, ainda tememos o amor, sentimos pelas pessoas que não conseguem enxergar além dos estereótipos, continuamos vizinhos, ainda não falei pra ele sobre a música que me alegra e acalma, muitas descobertas foram feitas, muitos gostos foram refinados, muitas visões sobre arte, política, sociedade, foram moldadas. Ele ainda é parte de mim, assim como eu parte dele. Ah sim, eu ainda não descobri o que nele é tão fascinante, mas tenho dado o nome dessas sensações que eu tenho em relação a ele de: sensibilidade à flor da pele. Tente conviver com uma pessoa assim, especial e intrigante, que poderás sentir o que eu quero dizer.



Ana Ferraz

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