terça-feira, 21 de junho de 2011

Há meros devaneios tolos a me torturar

Curiosidade mata!
Mata sim, por dentro. Não sei se tu já se sentiu curioso em relação a alguém, aquela curiosidade de necessidade, que consome por dentro porque gera uma ansiedade difícil de lidar. Um querer conhecer a pessoa sem saber muito bem aonde quer chegar, simplesmente querer saber o que pensa, como age, como vive, o que já viveu, mas não por mera vontade de saber pra falar por aí, mas sim porque acredita que pode crescer com isso, construir uma relação a partir disso. Em âmbito geral as relações hoje são tão simplistas, basicamente ou tu conhece alguém com a intenção de querer algo sexual ou/e amoroso ou porque existem interesses profissionais ou financeiros. Hoje as pessoas não se permitem conhecer alguém para criar um vinculo para se ter um vinculo, só isso. O que pode sair disso, é o que menos importa no momento. Conhecer para estabelecer relações de apenas querer bem. Eu acredito que isso ainda seja possível, eu tenho sede de conhecer pessoas, mas muitas vezes eu esbarro no medo. Acho que ele é o elemento principal nessas relações estabelecidas, existe muito medo, as pessoas não se permitem serem conhecidas, assim como muitas vezes não conseguem conhecer porque o medo é mais forte do que a vontade de conversar. Isso incomoda, mas no fundo isso tem seus porquês de existir, o medo pode passar segurança. Não é fácil se mostrar pra alguém que tu ainda não conhece, isso exige recursos internos importantes, que as vezes ultrapassam a vontade.
Conhecer aos poucos pode ser a melhor opção, ir medindo o quanto a gente pode ir entrando na vida do outro e o quanto o outro quer que a gente o conheça. Ouvi uma vez uma frase que marcou muito a minha vida: "É uma ansiedade maluca tu conhecer pessoas maravilhosas e tu não saber o dia que vai desencontrar. Quando tu encontra alguém tu encontra um abismo também, assim como quando tu encontra contigo mesmo. Tem um abismo lá, é importante olhar, é importante mergulhar nele, mas dá uma ansiedade antes de fazer isso e como fazer isso?!"
Sempre que penso no outro, essa frase me salta à mente, acho que é isso mesmo pessoas são singulares e isso que torna os seres humanos interessantes. É nessa singularidade humana que residem as emoções que a curiosidade se liga, acredito que a gente cria no outro um querer conhecer, mas isso não significa que é uma tarefa fácil. São tantas coisas envolvidas, ansiedades motivadas por inúmeros sentimentos. Conhecer pessoas não é simples, não é superficial ao ponto de acabar em um negócio ou em uma cama qualquer, pelo menos não deveria ser assim. Conhecer realmente alguém implica em investimento e quando a gente consegue achar força pra isso as surpresas são elementos motivadores. Concordo que muitas situações a intenção é sim apenas acabar em um negócio bem feito, em uma cama qualquer, satisfazer o desejo de consumo, seja ele sexual, emocional, profissional, sei lá são tantos os interesses que movem as pessoas. Mas acredito que sempre, conhecer pessoas é uma tarefa que deve ser executada com cuidado. Não se pode brincar, isso envolve além de ti um outro, que muitas vezes ainda não é possível entender na sua complexidade, talvez entender alguém em sua complexidade seja impossível. Acho que sermos abismos significa sermos humanos, para Marx, seres humanos são a soma total de suas relações. Acredito que o centro dessa história toda, que foi alongada nesses devaneios meus é que somos seres que se relacionam, só é possível uma cria humana virar um SER humano de fato porque existe investimento de um outro, isso nos torna pessoas e pessoas são seres de relação.
A curiosidade mata, ela nos instiga a querer se relacionar, entretanto ela nos joga num "mar" de ansiedade e medo, talvez porque nunca aprendemos a nos relacionar, apenas fomos nos relacionando por uma necessidade de sobrevivência. Pensar nas relações pode não ser uma tarefa fácil, talvez isso mova as pessoas para um relacionar-se superficial. Somos todos abismos e mergulhar em um abismo necessita de vontade e coragem, a gente não sabe o que tem do outro lado e pode ser que a gente nunca descubra.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Dia de Caio



Um dia cansativo, sem tempo pra escrever aqui então salvo os olhos de vocês com um texto emocionante do C.F.A. 
Que eu nunca consiga não dizer que gosto das pessoas! Pai e Mãe, crescer não é fácil, mas pode ser doce!








"São Paulo, 12 de agosto de 1987
Querida mãe, querido pai,
Não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado.

Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado.
Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como "eu gosto de você". Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela – mas não consegue vivê-la.

Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco – todas as pessoas são loucas, inclusive nós; amor encabulado – nós, da fronteira com a Argentina, somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.

Amo vocês, seu filho,
Caio"

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Dia de Fernando Pessoa!

      TABACARIA
    Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.  À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.  Janelas do meu quarto,  Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?),  Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,  Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,  Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,  Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,  Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.  Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.  Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,  E não tivesse mais irmandade com as coisas  Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua  A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada  De dentro da minha cabeça,  E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.  Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.  Estou hoje dividido entre a lealdade que devo  À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,  E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.  Falhei em tudo.  Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa.  Fui até ao campo com grandes propósitos.  Mas lá encontrei só ervas e árvores,  E quando havia gente era igual à outra.  Saio da janela, sento-me numa cadeira.  Em que hei de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso?  Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!  Gênio?  Neste momento  Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,  E a história não marcará, quem sabe?, nem um,  Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.  Não, não creio em mim.  Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!  Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?  Não, nem em mim... Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo  Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,  E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?  O mundo é para quem nasce para o conquistar  E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.  Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,  Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.  Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,  Ainda que não more nela;  Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,  E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,  E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada.  Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente  O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,  E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas,  Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco,  Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei  A caligrafia rápida destes versos,  Pórtico partido para o Impossível.  Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro  A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa.  (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê - Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)  Vivi, estudei, amei e até cri,  E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.  Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,  E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses  (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);  Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo  E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente  Fiz de mim o que não soube  E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado.  Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara.  Quando a tirei e me vi ao espelho,  Já tinha envelhecido.  Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência  Por ser inofensivo  E vou escrever esta história para provar que sou sublime.  Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça  Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.  Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.  Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada  E com o desconforto da alma mal-entendendo.  Ele morrerá e eu morrerei.  Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.  A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,  E a língua em que foram escritos os versos.  Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.  Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra,  Sempre uma coisa tão inútil como a outra,  Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.  Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano,  E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los  E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.  Sigo o fumo como uma rota própria,  E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações  E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.  Depois deito-me para trás na cadeira  E continuo fumando.  Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.  O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).  Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.  (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)  Como por um instinto divino o  Esteves voltou-se e viu-me.  Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo  Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
    Álvaro de Campos, 15-1-1928

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Anotações

Assisti um vídeo que me mobilizou bastante, muitas coisas ultimamente vem mexendo com um lado meu que eu tinha acomodado um pouco. O vídeo era uma conversa de alguns jovens com o escritor Eduardo Galeano.
Isso me fez voltar ao começo da faculdade, quando eu quase desisti do curso porque queria entender quando que a gente deixava o "pedestal do saber" pra poder encostar no sofrimento de forma que eu também me sentisse parte do mundo, não dona dele. Eu era inocente, mas mesmo assim consegui achar o meu lugar no meio disso tudo, encontrar pessoas com vontade de pensar sobre isso e pude amadurecer meu olhar em relação aos diversos fazer e saberes, não só psicológicos, mas também humanos. Minha humanidade foi transformada, continua sendo transformada, mas as vezes a gente cansa um pouco e precisa de algo que ajude a puxar o ar pra continuar tentando.
Resolvi anotar o que eu senti ao ver e depois refletindo sobre o vídeo talvez como uma forma de memória pra poder reler quando estiver perdendo o folego ou simplesmente porque eu não tive a oportunidade de conversar com ninguém sobre isso.
Como eu não tinha com quem conversar decidi falar com o próprio Galeano e dando uma lida em "A escola do mundo ao avesso" troquei algumas idéias com ele, vi que em 1998 o tal "mundo as avessas" já fazia sentido. "O mundo tal qual é, com a esquerda na direita, o umbigo nas costas e a cabeça nos pés." tá ai, esse é o mundo que nós temos hoje, aquele mundo de merda que ele fala no vídeo. Esse mundo de merda tá se espalhando e quando a gente anda perto da sujeira é quase impossível que ela não respingue na gente. Quando um pouquinho dessa merda toda chega em nós é preciso refletir sobre isso, para mudar alguma coisa dentro de um sistema é preciso conhecer o sistema e quando a gente chega perto descobre que as coisas são sujas mesmo. A questão maior é como lidar com isso, quando a gente escolhe sentir além de racionalizar as coisas ficam perigosas, pra nós!
Acho que acabei me atrapalhando um pouco, como dizem "peguei nojo!". Peguei mesmo, mas acabei me acomodando e não fazendo a minha parte como deveria. É complicado ser jovem que pensa politicamente em um país, em uma sociedade, que afirma que jovem que pensa em política é chato, que pregam por aí que a juventude que luta não existe mais porque isso não dá mais certo, que hoje temos uma democracia que não permite que a luta na rua faça sentido. Mas o Galeano deu uma boa resposta, não temos que pensar no que vai acontecer depois, temos que pensar no que estamos fazendo AGORA. Isso me pegou, mas me deu ânimo ao mesmo tempo, eu parei de fazer porque? (sim esse é o momento de olhar pro horizonte e fazer cara de sábio)
Acho que essas dúvidas que eu tenho fazem parte de um tentar ver com os meus olhos e isso é bom, pelo menos eu acho. Não é fácil querer mexer nessas coisas, é muito mais fácil escolher pensar pelo que me dizem que é melhor pensar, pode ser um erro eu afirmar isso, o que eu sei sobre o que passa na vida dos outros?
Mas é possível ver que isso existe, quando a gente vê pessoas mudando de opinião de forma tão rápida que tudo se explica quando passa no jornal que o partido de esquerda fez união com o de direita ou que rachou por brigas de vertentes, decepciona um pouco, devo ser ingenua ainda, assim como eu era no inicio da faculdade. Mas eu prefiro ser assim, questionar o meu próprio pensamento não me assusta e acho que me ajuda a crescer.
Acredito que as coisas podem ser diferentes e acho que a gente pode ajudar a mudar isso, cada um muda alguma coisa no mundo, dentro da sua alçada e acho que assim que é o processo de evolução da sociedade. Pode ser clichê, não me importo em repetir o que a gente ouve por aí a tanto tempo, quem sabe de tanto falar as pessoas comecem a agir?
Sejamos seres humanos completos, não apenas indivíduos(alguém que é um), mas pessoas(ser de relação).  Sei que não é fácil, olha pra mim aqui desabafando em forma de anotações, mas acredito que é possível. Ah, não vamos ficar mais lindos ou bonzinhos com isso, somos HUMANOS!

segunda-feira, 6 de junho de 2011

para as conversas de ônibus do dia de hoje, para élvis bonini...

meio sem querer eu percebi que hoje não leio mais as mesmas coisas, passou o tempo em que a vida se resumia à poesia, nouvelle vague falava por mim no cinema e los hermanos cantavam exatamente o que eu sentia. isso assusta, parece que já não me reconheço no que eu sou, mas o que será mesmo que eu sou?
acho que não me tornei, mas continuei sendo eu mesma. meus filmes preferidos ainda são franceses, minha banda ainda é a mesma, só que hoje tocam diferente. não uso mais eles pra fugir, mas pra me enfrentar. 
se isso é bom só o tempo vai dizer o que sei é que não é mal, só um pouquinho diferente. das coisas que deixei de ler posso dizer que lembro muito bem, acho que um dia desses eu tiro da estante e releio para ver como vai bater. das que ainda nem comecei, já sinto vontade. 
ninguém me disse que ia ser fácil, mas fugir já não é mais uma escolha. que a arte me guie e me faça crescer, chega de usar ela pra me esconder!

sábado, 4 de junho de 2011

Girar, girar, sem querer parar

Do alto da roda gigante ele podia ver a cidade, lá em baixo iluminada e silenciosa. O parque já havia fechado, mas ele continuava lá sentado, sentia-se confortável e seguro, embora não gostasse do orvalho da noite que deixava suas roupas úmidas. Com a mão esquerda acariciava uma fotografia antiga, tinha os olhos atentos à foto, como se quisesse mergulhar no papel. Repetia em voz alta, já que ninguém podia ouvi-lo lá de cima, uma canção antiga que escutava na mocidade. Depois de repetir o refrão algumas vezes, calou-se. O silêncio era interrompido pelo barulho dos insetos e pequenos animais que rondavam o parque.
As luzes da cidade foram apagando-se, o orvalho da noite abria espaço para um tímido sol que aparecia por entre as nuvens. Lá de cima ele podia ver o alvorecer. Em pouco tempo a cidade já mostrava sinais de movimentação, alguns homens saíam de bicicleta em direção à obra de reforma da igreja, as crianças com suas mochilas entravam no ônibus e algumas mulheres conversavam no portão. O ritmo da pequena cidade era sempre o mesmo, calmo e pacato.
Era incrível a visão que o homem tinha lá do alto, a roda gigante proporcionava uma sensação de grandeza, ele sentia-se mais perto do céu e com o poder de ver quase tudo que acontecia na terra, sem que as pessoas ou os pássaros o notassem. Olhava a vida de uma forma que ela parecia distante dele o fazia ficar em silêncio, como espectador da realidade.
O parque só funcionava à noite, ele teria que ficar lá em cima até o brinquedo começar a girar. Ele sabia que a espera seria longa e gostava disso, gostava também de girar, sabia que assim como a roda girava sem sair do lugar a cada volta que ela dava uma sensação diferente proporcionava, por isso girava, girava sem querer parar. Puxou um maço de cigarros do bolso, acendeu um fósforo e deu uma comprida tragada. Ao soltar a fumaça bateu na caixinha o antigo samba da noite anterior, seus olhos encheram-se de lágrimas, o cigarro sendo seguro pelos lábios não permitia que o som saísse firme de sua boca, mas as lagrimas escorriam leves de seus olhos. Ele não parava de cantar, sua voz não estava embargada, agora já sem o cigarro nos lábios, ela soava mais forte a cada palavra. Repetiu a música muitas vezes, as lágrimas molhavam o casaco ainda úmido do sereno, seu rosto parecia mais limpo, sua alma mais leve.
Observando as pessoas que passavam lá na rua ele desconfiava que o tempo andava rápido, já havia passado do meio dia. Puxou novamente do bolso a fotografia, olhou-a por alguns minutos, dessa vez com menos atenção. Os seus olhos esboçavam alegria e sua boca um tímido sorriso. Ajeitou-se no banco apoiando suas costas no parapeito da cabine, ela balançava um pouco, mas ele não pareceu se importar com isso. Parecia estar alegre, com o corpo relaxado e os olhos fechados, balançava a foto no ar, sentia o vento que seus movimentos produziam, sussurrava baixinho que podia voar.
Ele estava sozinho, distante e feliz. Podia ser quem ele quisesse, preferiu ser o que ele era. Acendeu um cigarro e olhou para baixo, como se precisasse certificar-se da distância que ele se encontra do chão. Guardou a fotografia no bolso, tirou o casaco e amarrou-o na cabeça, o sol da tarde ardia forte. O calor foi o único desconforto, não sentia sede, fome ou sono, apenas o ardor do sol em seu rosto.
O sol começava a esconder-se no horizonte, o homem que olhava novamente atento a fotografia não podia perceber que o pôr do sol se aproximava. Com a mão direita segurava a foto, pela primeira vez a luz permitia que ela fosse vista com clareza. Três homens, lado a lado, todos muito jovens. Ele pegou seu maço de cigarros, acendeu um fósforo e levou até o cigarro que estava em sua boca. Quando soltou a fumaça, repousou o braço sobre a perna, as cinzas caíram em cima do sapato surrado que ele calçava. Deu mais uma tragada e jogou o cigarro fora. Com a mão esquerda rasgou a foto, ficou com dois pedaços de papel na mão, em um deles encontravam-se duas figuras, no outro apenas uma. Rasgou em cinco pedaços o papel que tinha apenas um homem e os arremessou para fora da roda gigante. Ficou acompanhando os pedacinhos de papel que flutuavam no ar até que caíssem no chão.
O tempo havia passado, a noite chegara e trouxe com ela muitas pessoas ao parque. A roda começou a girar, quando o monitor do brinquedo deparou-se com aquele homem na cabine levou um susto, deixou que a roda completasse mais uma volta, então parou e pediu para que ele se retirasse. Muito surpreso indagou-o como ele tinha parado lá em cima, mas o homem não respondeu. Saiu do brinquedo, pegou a mão do monitor, entregou-lhe a outra metade da fotografia e saiu andando pelo parque, até sumir em meio a multidão. O funcionário do parque não entendeu nada do que estava acontecendo. Segurou o pedaço da foto, nela havia dois homens bem vestidos com ternos e chapéus bem alinhados, a fotografia em preto e branco estava amarelada por causa do tempo. O garoto virou o papel, no verso bem ao canto tinha uma inscrição, atentamente ele decifrou o que estava escrito. “Amigo, devo a ti a minha vida. São Paulo 1968.”
O monitor ficou parado olhando atentamente a fotografia, nenhum dos homens parecia com aquele que havia saído da roda gigante. Sem saber como ele havia parado lá em cima o garoto esboçou um tímido sorriso, guardou a foto no bolso, apertou o botão e ligou a roda gigante. Ela começou a girar, girar, sem querer parar.