sábado, 4 de junho de 2011

Girar, girar, sem querer parar

Do alto da roda gigante ele podia ver a cidade, lá em baixo iluminada e silenciosa. O parque já havia fechado, mas ele continuava lá sentado, sentia-se confortável e seguro, embora não gostasse do orvalho da noite que deixava suas roupas úmidas. Com a mão esquerda acariciava uma fotografia antiga, tinha os olhos atentos à foto, como se quisesse mergulhar no papel. Repetia em voz alta, já que ninguém podia ouvi-lo lá de cima, uma canção antiga que escutava na mocidade. Depois de repetir o refrão algumas vezes, calou-se. O silêncio era interrompido pelo barulho dos insetos e pequenos animais que rondavam o parque.
As luzes da cidade foram apagando-se, o orvalho da noite abria espaço para um tímido sol que aparecia por entre as nuvens. Lá de cima ele podia ver o alvorecer. Em pouco tempo a cidade já mostrava sinais de movimentação, alguns homens saíam de bicicleta em direção à obra de reforma da igreja, as crianças com suas mochilas entravam no ônibus e algumas mulheres conversavam no portão. O ritmo da pequena cidade era sempre o mesmo, calmo e pacato.
Era incrível a visão que o homem tinha lá do alto, a roda gigante proporcionava uma sensação de grandeza, ele sentia-se mais perto do céu e com o poder de ver quase tudo que acontecia na terra, sem que as pessoas ou os pássaros o notassem. Olhava a vida de uma forma que ela parecia distante dele o fazia ficar em silêncio, como espectador da realidade.
O parque só funcionava à noite, ele teria que ficar lá em cima até o brinquedo começar a girar. Ele sabia que a espera seria longa e gostava disso, gostava também de girar, sabia que assim como a roda girava sem sair do lugar a cada volta que ela dava uma sensação diferente proporcionava, por isso girava, girava sem querer parar. Puxou um maço de cigarros do bolso, acendeu um fósforo e deu uma comprida tragada. Ao soltar a fumaça bateu na caixinha o antigo samba da noite anterior, seus olhos encheram-se de lágrimas, o cigarro sendo seguro pelos lábios não permitia que o som saísse firme de sua boca, mas as lagrimas escorriam leves de seus olhos. Ele não parava de cantar, sua voz não estava embargada, agora já sem o cigarro nos lábios, ela soava mais forte a cada palavra. Repetiu a música muitas vezes, as lágrimas molhavam o casaco ainda úmido do sereno, seu rosto parecia mais limpo, sua alma mais leve.
Observando as pessoas que passavam lá na rua ele desconfiava que o tempo andava rápido, já havia passado do meio dia. Puxou novamente do bolso a fotografia, olhou-a por alguns minutos, dessa vez com menos atenção. Os seus olhos esboçavam alegria e sua boca um tímido sorriso. Ajeitou-se no banco apoiando suas costas no parapeito da cabine, ela balançava um pouco, mas ele não pareceu se importar com isso. Parecia estar alegre, com o corpo relaxado e os olhos fechados, balançava a foto no ar, sentia o vento que seus movimentos produziam, sussurrava baixinho que podia voar.
Ele estava sozinho, distante e feliz. Podia ser quem ele quisesse, preferiu ser o que ele era. Acendeu um cigarro e olhou para baixo, como se precisasse certificar-se da distância que ele se encontra do chão. Guardou a fotografia no bolso, tirou o casaco e amarrou-o na cabeça, o sol da tarde ardia forte. O calor foi o único desconforto, não sentia sede, fome ou sono, apenas o ardor do sol em seu rosto.
O sol começava a esconder-se no horizonte, o homem que olhava novamente atento a fotografia não podia perceber que o pôr do sol se aproximava. Com a mão direita segurava a foto, pela primeira vez a luz permitia que ela fosse vista com clareza. Três homens, lado a lado, todos muito jovens. Ele pegou seu maço de cigarros, acendeu um fósforo e levou até o cigarro que estava em sua boca. Quando soltou a fumaça, repousou o braço sobre a perna, as cinzas caíram em cima do sapato surrado que ele calçava. Deu mais uma tragada e jogou o cigarro fora. Com a mão esquerda rasgou a foto, ficou com dois pedaços de papel na mão, em um deles encontravam-se duas figuras, no outro apenas uma. Rasgou em cinco pedaços o papel que tinha apenas um homem e os arremessou para fora da roda gigante. Ficou acompanhando os pedacinhos de papel que flutuavam no ar até que caíssem no chão.
O tempo havia passado, a noite chegara e trouxe com ela muitas pessoas ao parque. A roda começou a girar, quando o monitor do brinquedo deparou-se com aquele homem na cabine levou um susto, deixou que a roda completasse mais uma volta, então parou e pediu para que ele se retirasse. Muito surpreso indagou-o como ele tinha parado lá em cima, mas o homem não respondeu. Saiu do brinquedo, pegou a mão do monitor, entregou-lhe a outra metade da fotografia e saiu andando pelo parque, até sumir em meio a multidão. O funcionário do parque não entendeu nada do que estava acontecendo. Segurou o pedaço da foto, nela havia dois homens bem vestidos com ternos e chapéus bem alinhados, a fotografia em preto e branco estava amarelada por causa do tempo. O garoto virou o papel, no verso bem ao canto tinha uma inscrição, atentamente ele decifrou o que estava escrito. “Amigo, devo a ti a minha vida. São Paulo 1968.”
O monitor ficou parado olhando atentamente a fotografia, nenhum dos homens parecia com aquele que havia saído da roda gigante. Sem saber como ele havia parado lá em cima o garoto esboçou um tímido sorriso, guardou a foto no bolso, apertou o botão e ligou a roda gigante. Ela começou a girar, girar, sem querer parar.

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