segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Quinquilharias do antigo blog

Resolvi postar aqui algumas quinquilharias que estão no meu antigo blog Ouse tudo.
Então vou começar com um dos meus textos, lá quando eu tinha uns 17 ou 18 anos, toscos e inocentes textos!



Longe de mim



Longe de mim, acho que o amor passa longe de mim.
Chove, chove, chove muito lá fora, eu posso ver através do vidro os pingos caindo no asfalto cinza e molhado. Na sala a televisão sussurra baixinho, frases que eu não compreendo e o cinzeiro cheio me dá mais vontade de aumentar as garrafas vazias sobre a mesa. Abraçada ao travesseiro eu penso em coisas como: porque a gente arruma a cama para dormir se em segundos estará desarrumada ou porque usamos pijama se ninguém nos vê dormindo. Então lembro que eu não uso pijamas e há tempos nem a cama arrumo. Um clima de nostalgia que se formara desde aquele dia em que tudo acabou e a fumaça do cigarro traz no ar um sentimento de solidão que penetra fundo na minha alma, me faz sentir medo. Nem meus livros me animam mais, aquele disco dos Beatles não me faz cantar e muito menos as antigas fotografias melhoram o meu humor, eu sou uma alma só num mundo deserto de pessoas especiais.

Era agosto, o frio da cidade me dava esperanças de que as coisas iam melhorar, eu amava o frio, era lindo passear no fim de tarde sentindo o vento frio cortar meu rosto enquanto o sol tímido se despedia no horizonte, eu sabia que nos encontraríamos mais tarde, a música rolaria solta, os Beatles embalariam nossos papos interessantíssimos sobre teorias e historias das quais os personagens não éramos nós. Os copos cheios se responsabilizariam pelas gargalhadas exageradas, a fumaça dos cigarros dariam um clima mais aconchegante e a luz baixa nos tornaria mais íntimos, como se precisasse. Éramos como velhos amigos, sentados conversando sobre coisas banais, nos permitíamos um contato físico e sentimental que só se tem entre pessoas com almas diferentes, puro, amoroso e protetor. Tudo era tão sublime e eu tinha a certeza que o amor estava ali presente nos gestos, nas palavras nos olhares que penetravam fundo na alma do outro sem que um sentimento desconfortável de constrangimento tirasse o brilho daquele momento, em que estávamos totalmente entregues um ao outro.
Mas naquele dia daquele mês de agosto algumas coisas haviam mudado. Desde então nossos olhares não se cruzavam mais, os assuntos não fluíam e éramos como estranhos um para o outro, sem explicação lógica para essa mudança de sentimento, apenas a sensação de que as coisas estavam erradas, como se os planetas tivessem saído de órbita ou o sol mudado de lugar, não tinha explicação e não tínhamos idéia de como isso acontecera, mas aconteceu.
Aconteceu naquele mês de agosto. Os encontros começaram a se tornar raros, nem olhávamos mais um para o outro, o disco não tocava mais, o sonho tinha acabado e junto com ele todo aquele sentimento sublime dava lugar a um sentimento cruel que doía, doía fundo numa alma vazia. Bebíamos mais, fumávamos mais, mas não se escutavam gargalhadas e o clima era frio e distante. Até o dia que passei por ele na rua e um pequeno gesto com a mão selou o fim de tudo.

Longe de mim, eu tinha certeza que o amor passava longe de mim.
Os dias eram intermináveis, já era Novembro e eu continuava só, no mesmo apartamento, com a mesma luz baixa, mas o triplo de garrafas sobre a mesa, os maços de cigarro vazios já faziam parte da decoração, meus livros estavam jogados pelo chão, eu tentava lê-los, mas não tinham mais graça, na vitrola os Beatles tinham sido trocados por umas sinfonias tristes de Wagner que me traziam pensamentos diferentes, eram mais ferozes, eu tinha vontade de invadir a Polônia, a Escócia, e Ucrânia, transforma-los em paises livres do sofrimento de sua história, mas na verdade a Polônia, a Escócia, a Ucrânia e principalmente a Rússia, eram eu mesma, fria, enorme e vazia.
Longe de mim, o amor está longe de mim.

Em Janeiro a situação era praticamente a mesma, eu continuava no mesmo lugar, a luz baixa era fraca e as garrafas já ocupavam metade da sala, meus dias eram tristes, eu começava a ter medo, trocara os discos pela televisão, mas os sussurros que saiam dela eram mais vazios do que a minha alma, preferia a companhia dos livros fechados por falta de leitura e os discos jogados pelo chão do que o vazio da televisão. Já havia esquecido a Polônia, a Escócia era apenas uma vaga lembrança, a mais marcante, pois eram de lá os uísques mais saborosos e a minha companhia se resumia neles.
Os meses de verão não eram os meus preferidos, o calor me cansava, preferia o frio de Agosto, que apesar de me trazer lembranças daquele sentimento feliz me trazia esperança de que o próximo agosto seria diferente, mas a realidade me incomodava, saber que ainda era janeiro me fazia pensar nas plantas sedentas e nos animais calorentos que assim como eu queriam água fresca para dar um ânimo para recomeçar, mas era janeiro e a água era quente e eu não achava ânimo para nada.
Longe, ainda mais longe de mim, o amor estava longe de mim.

Chove, ainda chove, os pijamas e as camas desarrumadas tentam disfarçar outros pensamentos, tento me esconder atrás de sussurros televisivos para não encarar a realidade que eu descobri há um ano atrás. Não consigo aceitar, não consigo me livrar, não consigo aprender a conviver com isso. Preciso aprender a viver sem o amor, não é fácil, a vida não é fácil, mas eu ainda tenho esperança, mas preciso me erguer, perdi um ano entre garrafas e cigarros, invadindo a Europa, desarrumando camas, trocando Beatles por Wagner. Um ano, é agosto, chove, eu vejo isso através do vidro, os pingos tocam suavemente o asfalto cinza e molhado, a luz baixa ilumina os livros empoeirados pelo chão, pego o Magical Mystery Bus, os Beatles voltam a tocar, eu me reanimo. Devagar começo a mexer nos livros do chão, tiro a poeira da capa dura e escura, não consigo ver direito o nome do livro, o tempo apagou até isso. Reanimo-me, volto a ler, escutar os discos, vejo que foi um ano perdido, mas não um ano inútil. A culpa de eu estar assim é minha, não do amor. Hoje eu descobri que longe, longe do amor, acho que eu passo longe do amor.


Ana Ferraz